III Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico I Encontro Nacional de Geografia Histórica 5 a 10 de novembro de 2012 BREVE HISTÓRIA DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO PORTUÁRIO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, DO SÉCULO XVIII À REFORMA PASSOS: UMA APROPRIAÇÃO FOUCAULTIANA Letícia Giannella Doutoranda em Geografia / Universidade Federal Fluminense leticiagiannella@gmail.com
O presente trabalho traz à discussão o processo histórico de produção do espaço
portuário da cidade do Rio de Janeiro à luz de uma apropriação relativizada e com
ressalvas do pensamento de Foucault sobre o poder. Desta forma, são analisadas as
práticas urbanas que foram, ao longo do tempo, produzindo o que conhecemos hoje por
zona portuária carioca, compreendendo-as no quadro de significações foucaultiano a
respeito do poder soberano, disciplinar e do biopoder. O artigo é escrito em um contexto
de intensas transformações vividas pela área contemporaneamente – o projeto Porto
Maravilha – e ressalta-se, no texto, o processo permanente de invisibilização da
população portuária, cujos espaços de vida vão sendo produzidos e conformados à
revelia de suas necessidades e seus desejos.
Palavras-chave: Rio de Janeiro; zona portuária; relações de poder.
O espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro está em evidência. Sua imagem
figura cotidianamente estampada nas páginas dos jornais e na tela da televisão. Textos e
discursos sobre a área circulam por todos os meios possíveis e em diferentes escalas
geográficas. Pesquisas acadêmicas surgem todos os dias, bem como grupos de trabalho
e eventos dedicados à temática.1 Em resumo, esta porção do espaço carioca está, como
1 Para confirmar, basta digitar “Porto Maravilha” no site de pesquisas “Google acadêmico” e o leitor se deparará com dezenas de trabalhos sobre a área.
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Entretanto, surpreende-nos a falta de referência ao processo histórico de
produção desse espaço e, mais ainda, aos seus próprios produtores e seus cotidianos
O jornal carioca O Globo, por exemplo, em sua versão digital, abre reportagem
sobre o projeto Porto Maravilha e outros similares com o seguinte título: a cidade renasce das ruínas. Em seguida vem a sentença: “de ruas mal iluminadas, imóveis
abandonados e ocupações irregulares surgem áreas reurbanizadas, com forte potencial
de atrair investidores, turistas e moradores” (Rocha, Motta & Vasconcelos, 2010).
Através desta construção discursiva os moradores atuais do espaço portuário e
seus antecessores se tornam invisíveis para o restante da cidade e do mundo e são,
portanto, excluídos dos processos que decidem os rumos dos seus próprios espaços de
vida, ao mesmo tempo em que se legitima perante o restante da população a suposta
necessidade da intervenção urbana em questão.
Todavia, esta condição de invisibilidade da população portuária não é um fato
novo, sua história sendo marcada desde o início por estigmas e por relações de poder
que os reforçam. Neste sentido, torna-se necessário que direcionemos um olhar apurado
para a história da produção daquela porção do espaço da cidade a fim de que possamos
compreender com maior clareza o processo contemporâneo.
Desta forma, intencionamos fazer aqui uma leitura foucaultiana do processo
histórico da produção do espaço portuário carioca a partir das ideias do filósofo sobre o
poder. Quando falamos em poder, falamos de relações sociais, correlações de força,
lutas e estratégias. Segundo Foucault (1985, p. 89), “o poder não é uma instituição e
nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome
dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”. Sendo assim,
o poder se exerce e não simplesmente existe enquanto uma coisa, ou melhor, ele só
existe porque se exerce. O poder é relacional, capilarizado, construído e desconstruído
por meio de redes sociais em escala micro, sendo que os afrontamentos que se ajustam e
se tornam hegemônicos são institucionalizados, por exemplo, pelo Estado, e daí
surgiriam as grandes dominações. Por outro lado,
[As relações de poder] não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. (.). Elas são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor irredutível.
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(.). Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais. E é certamente a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa sobre a integração institucional das relações de poder. (Foucault, 1985, p. 91-92)
Neste sentido, percebe-se a importância em tentarmos apreender essas
resistências pulverizadas no cotidiano citadino, não sem razoável dificuldade. No nosso
caso, surpreende-nos a forma com a qual a população portuária já nasce estigmatizada e,
no decorrer das diversas transformações pelas quais ela passa, o modo com o qual se
reforça este estigma. São pessoas que já sofreram, assistiram ou muito ouviram falar
sobre a destruição de lares e a perda de territórios e territorialidades decorrentes da tão
falada necessidade de disciplinar a cidade e torná-la civilizada. São pessoas que
continuam representando a outra ponta das relações de poder que é a resistência e que,
com isso, vão construindo contra-condutas que permitem sua sobrevivência física e
simbólica, o que implica na sobrevivência dos seus territórios e territorialidades.
Nossa preocupação em elaborar este apanhado histórico da produção do espaço
da zona portuária carioca contribui para que possamos nos aproximar das resistências
mais ou menos pulverizadas. Arriscaríamos acrescentar às conclusões de Foucault o fato
de grande parte das lutas contemporâneas terem em comum também o fato de estarem
lutando por territórios e territorialidades e, sendo assim, estamos com Haesbaert (2009)
quando o geógrafo conclui: “se o poder, como afirma Foucault, implica sempre
resistência, que nunca é exterior a ele, os grupos subalternos ou ‘dominados’ na verdade
estão sempre, também, (re)construindo suas territorialidades, ainda que relativamente
ocultas, dentro deste movimento desigual de dominação e resistência” (não paginado).
As lutas da zona portuária podem ser analisadas a partir do viés da luta por territórios e,
para tanto, é necessário que partamos da questão do poder e suas resistências.
Logo, abordamos a temática em questão tendo como fio condutor os
mecanismos de poder predominantes em cada período histórico: o poder soberano, o
poder disciplinar e o biopoder, ainda que com ressalvas e adaptações. O momento
contemporâneo, ou seja, o processo de implementação do projeto Porto Maravilha, está
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sendo analisado pela autora em outros trabalhos2 e não será aprofundado aqui devido à
Finalizando esta introdução e antecedendo o início do exercício proposto, é
preciso que nos posicionemos e deixemos claro de que experiências cotidianas
vivenciadas pela autora surge o presente ensaio, ou seja, de que lugar estamos falando.
Partimos de uma inserção militante na zona portuária carioca que se dá com
certa consistência e intensidade desde janeiro de 2011 através da formação do Fórum
Comunitário do Porto, movimento composto por moradores, acadêmicos, ONGs,
mandatos parlamentares e entidades culturais que possui como objetivo vocalizar
denúncias de violações de direitos e articular apoios institucionais necessários à ação
política de defesa desses direitos. É neste espaço de ação que nosso discurso se
instrumentaliza e nossos entendimentos se afinam, mas é também a partir desta vivência
que somos levados a buscar tentativas de compreensão dos processos contemporâneos
que vão além das teorias clássicas da produção do espaço urbano. Feito este necessário
posicionamento, acreditamos não ser preciso afirmar que o presente trabalho reflete
nossa posição política em relação à temática estudada e nosso interesse pela defesa das
populações invisibilizadas e afetadas de alguma forma pelo projeto Porto Maravilha.
Estado policial, poder soberano e planejamento urbano no Rio de Janeiro do século XVIII
Michel Foucault se refere ao Estado mercantilista do século XVII e início do
século XVIII como um Estado policial – e soberano –, tendo a polícia aqui um sentido
amplo. Ela se ocuparia de tudo aquilo que está nas cidades em função do fortalecimento,
afirmação e crescimento das forças do Estado moderno. Ela trataria de questões que são
urbanas e mercantis, imbricando-se também na esfera privada. “Daí o fato de que a
polícia nos séculos XVII e XVIII foi, a meu ver, essencialmente pensada em termos do
que poderíamos chamar de urbanização do território. (.), no sentido estrito dos termos,
policiar e urbanizar é a mesma coisa” (Foucault, 2008, p. 452).
Uma vez sendo estabelecido o vínculo irrevogável entre a prática governamental
e a polícia, pode-se então dizer que esta instituição consistiria no “exercício soberano do
poder real sobre os indivíduos que são seus súditos” (Foucault, op. cit, p. 457). Assim,
2 Ver, por exemplo, Giannella (2011a e 2011b), além do “Relatório de Violação de Direitos e Reivindicações”, produzido pelo Fórum Comunitário do Porto.
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assistiu-se a uma “tentativa de disciplinarização geral, de regulamentação geral dos
indivíduos e do território do reino, na forma de uma polícia que teria um modelo
essencialmente urbano” (Foucault, op. cit, p. 458-459).
É neste contexto que se desenvolve o chamado urbanismo barroco, que tratou de
clarificar o espaço a fim de afirmar e dar visibilidade à força do Estado abrindo
avenidas, praças, jardins, construindo fortalezas e monumentos. Visava-se também
destruir as sinuosidades da cidade medieval, que seriam responsáveis por propagar
doenças e violências de todos os tipos e por dificultar a sujeição dos súditos ao
soberano. Importa rememorar que, nesse período histórico, o Estado se configurava
como um ente que deveria ser afirmado, admirado e temido por todos.
Foucault parte de um ponto de vista assumidamente eurocêntrico. Entretanto,
mesmo com todas as críticas que possamos fazer à apropriação indiscriminada de suas
ideias, podemos dizer que as práticas empreendidas nas metrópoles são, com alguns
limites e algumas ressalvas, reproduzidas ou idealizadas nas colônias, principalmente no
que se refere à urbanização das terras exploradas.3
Tal caráter é relativamente debatido em relação às colônias espanholas e
inglesas, enquanto as colônias portuguesas e em especial o Brasil costumam ser
reconhecidos no pensamento sobre a América Latina como espaços que surgiram e
cresceram sem qualquer espécie de planejamento e ordenação urbana. Entretanto,
tomando como referência o Rio de Janeiro, estamos em consonância com Fernandes
(2008) quando este afirma que a cidade, de uma forma ou de outra e com certa
defasagem temporal, procurou desde o século XVIII acompanhar os padrões
morfológicos das cidades do capitalismo central. Basta olharmos para uma iconografia
da Praça XV carioca (figura 1) e compará-la à Praça do Comércio, situada em Lisboa
(figura 2) – comparação esta destacada em outras ocasiões pelo geógrafo Nelson da
3 Inclusive, os mais expressivos agentes da produção do espaço urbano nas colônias, ao longo da história, se não são europeus têm boa parte de sua formação técnica em terras européias.
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Figura 1 – Gravura de Jean Baptiste Debret, início do século XIX.
Figura 2 – Gravura de Joaquim Carneiro da Silva, início do século XIX.
De uma forma ou de outra, o urbanismo barroco acabou por se constituir na
maior parte dos casos em transformações de porções do espaço restritas das cidades
tanto européias como coloniais, ainda que seus reflexos fossem visíveis por toda a
cidade. “Nem sempre era possível planejar toda uma cidade nova no estilo barroco, mas,
no traçado de meia dúzia de novas avenidas ou de um bairro novo, seu caráter podia ser
A extensão urbanizada do Rio de Janeiro, até meados do século XVIII,
compreendia o perímetro que se estende do Morro do Castelo ao Morro de São Bento,
adentrando discretamente em direção à Lapa, ao Campo de Santana e à Glória,
conforme observamos em carta datada de 1750 (figura 3).
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Figura 3 – “Carta Topographica da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, tirada e executada pelo Capitão André Vaz Figueyra, Acadêmico da Aula Militar. Anno d’1750”. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Extraída de: cristovao1.wordpress.com. Acesso em: jan. 2012.
Todavia, as construções e reformas barrocas empreendidas em localidades
específicas do centro da cidade, como o então Largo do Paço (atual Praça XV), a Rua
Direita (atual Primeiro de Março), o arqueduto da Carioca e o Passeio Público –
importando destacar que as reformas em questão também tinham como objetivo tornar a
área um expressivo centro comercial da cidade e construir espaços adequados às paradas
militares e às aparições públicas da corte –, foram acompanhadas e seguidas por
transformações que se situaram para além deste perímetro e marcaram a memória da
Na década de 1770, por exemplo, o mercado e o cemitério de escravos da cidade
foram transferidos das imediações do Largo do Paço para a enseada do Valongo (atual
Rua Camerino), no bairro da Saúde. A partir e por causa dessa transferência, a área –
que até então era basicamente composta por algumas chácaras – adensou-se com a
construção de armazéns, trapiches e casas de negociantes de escravos, dinamizando as
Logo, observa-se que reformas urbanísticas pontuais no centro da cidade foram
responsáveis por redefinir também o seu entorno, sendo neste contexto que o espaço
urbano objeto de nossa análise começa a ser produzido. Estima-se que passaram pelo
Cais do Valongo, entre 1770 e 1843 – ano da sua desativação como local de
desembarque de escravos –, cerca de 900.000 africanos escravizados. Os escravos
comercializados no Valongo não deixavam de circular pelo restante da cidade, mas
eram vendidos e trocados ali e as condições em que chegavam da África eram críticas,
muitos inclusive desembarcando já a beira da morte. Para as elites comerciais que
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circulavam pelas imediações do Largo do Paço, cuja função mercantil estava a cada dia
mais estabelecida, a convivência cotidiana com os escravos recém-chegados da África
era provavelmente algo a ser banido, ou melhor, posto à distância das vistas e olfatos
brancos e europeus ou aspirantes a europeus.
A grande virada do século XIX: rumo à sociedade disciplinar
A transferência do mercado de escravos se dá na mesma década da Revolução
Burguesa e acompanha a propagação dos seus ideais, bem como a consolidação do
modelo civilizatório capitalista industrial por todo o mundo ocidental(izado). A
burguesia que se consolidava naquele momento histórico teria trabalhado para
desarticular o Estado soberano a partir da segunda metade do século XVIII. Deste
modo, assistiu-se a uma transformação profunda na razão de Estado causada pela
economia, o que não significa propriamente uma ausência do Estado. Trata-se da
formação do que se costuma chamar de Estado liberal, onde “a razão econômica está,
não substituindo a razão de Estado, mas dando um novo conteúdo à razão de Estado e
dando, por conseguinte, novas formas à racionalidade do Estado” (Foucault, 2008, p.
Acompanhando esta mudança da razão de Estado, o sonho disciplinar
inicialmente baseado na cidade pestilenta do século XVII que exclui os ‘anormais’,
recorta e imobiliza o espaço, e que objetiva sujeitar os indivíduos à vontade única do
soberano por meio dos mecanismos da polícia, se transforma a partir de fins do século
XVIII tendo a figura arquitetural do Panóptico de Bentham como uma espécie de
modelo simbólico e laboratório para a utopia da cidade perfeitamente governada. A
grande transformação que se consolidou por toda a sociedade ocidental e que
caracterizou o sucesso desse mecanismo de poder foi a incorporação dos princípios que
regem as formas panópticas em cada meandro da vida social, subjetivando os corpos da
forma a mais discreta possível e fazendo com que os indivíduos se sentissem
permanentemente vigiados sem que os vigias fossem visíveis.
Desta maneira, o Panóptico seria uma espécie de protótipo da sociedade
disciplinar que se aperfeiçoaria desde então. Com a generalização praticamente
completa do mecanismo de poder disciplinar, a ostentação do poder através da
urbanização monumental dos territórios passa a ser menos essencial para o seu
exercício. O que importa a partir de então é, através da proliferação das instituições
disciplinares e da disciplinarização dos aparelhos existentes, “tornar mais fortes as
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forças sociais – aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução,
elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” (Foucault, 1984, p. 183).
Como conseqüência, as disciplinas saem das instituições e alcançam todo o corpo
social, assegurando “uma distribuição infinitesimal das relações de poder” (p. 190) e
configurando de vez o que o filósofo chama de sociedade disciplinar.
Portanto, podemos dizer que a transferência do mercado de escravos para o
Valongo, dando início à produção do espaço urbano da atual zona portuária carioca, já
compreenderia uma manifestação da generalização dos mecanismos de poder
disciplinares na cidade. A disciplina estava já presente no início do século XVIII
quando tratou-se de disciplinar o espaço urbano através das reformas barrocas. Todavia,
naquele período, intencionava-se, conforme já explicitado, dar visibilidade ao poder do
Estado e sujeitar os súditos ao poder do soberano. A grande virada para a generalização
do mecanismo de poder disciplinar, tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro,
teria se dado então do meio para o fim do século XVIII. Sob este mecanismo de poder
visa-se controlar o maior número possível de pessoas – e um dos meios de se exercer
esse controle é via produção do espaço – através do menor custo e da forma a mais
discreta possível, havendo a inversão do espetáculo em vigilância. Para que se possa
vigiar a sociedade de modo eficaz, a disciplina, além de promover a capilaridade do
poder, trata da distribuição das multiplicidades dos corpos no espaço, implicando na
repartição e especialização espacial, o que fica explícito no caso do Valongo. Os corpos
são tratados como máquinas, como peças de uma engrenagem que devem ser
permanentemente vigiadas, consertadas, reparadas, controladas e aperfeiçoadas.
Assim, quais são as estratégias utilizadas pelo capital insurgente que fazem com
que seus interesses sejam satisfeitos no jogo das relações de poder que são travadas
cotidianamente? Não há mais, no século XIX, uma regulamentação estrita do Estado,
mas somente a sua aparente ausência não é capaz de explicar a hegemonia de
determinados sujeitos na produção do espaço urbano. Há uma série de mecanismos e
táticas que promovem a capilaridade do poder e acabam por servir a tais interesses. A
ostentação do poder passa a ser menos importante do que a penetração da disciplina no
cotidiano da população através de uma rede capilar de micropoderes.
O Rio de Janeiro, em 1808, recebe a Corte portuguesa e promove a abertura dos
portos à Inglaterra, medidas que intensificaram as atividades industriais, portuárias e
comerciais da cidade, baseadas principalmente nos interesses privados dos cafeicultores
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do Vale do Paraíba articulados ao mercado mundial e, principalmente, inglês, sendo a
cidade o principal escoadouro da produção cafeeira (Bernardes, 1992 e Abreu, 1987).
Ainda, em 1850 decretou-se a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu a entrada de novos
escravos no país. Com o montante de capital liberado do comércio de escravos que
necessitava ser reinvestido, surgem as companhias de empreendedores como o Barão de
Mauá, responsáveis pelo surto de industrialização vivido pelo Brasil naquele momento
por meio da construção de infraestrutura essencial para o escoamento do café.
Com esta mudança no panorama da cidade, a disciplina se torna o mecanismo de
poder hegemônico, uma vez que os corpos deveriam ser transformados em força de
trabalho adequada à nova realidade capitalista que surgia e, para tal finalidade, tentou-se
disciplinar o tempo, o lazer, a cultura, a alma, o espaço. Em outras palavras,
disciplinarizou-se a vida cotidiana dos habitantes daquele espaço. As instituições e
indústrias relacionadas às atividades portuárias se constituíram enquanto importantes
Contudo, como toda relação de poder é constituída também por resistências (se
não há resistência não há relação de poder), o cotidiano das populações que habitavam a
zona portuária era também preenchido pelos “devaneios” e “botequins”, conforme nos
esclarece Chaloub (2005), e pelas irrupções sociais que tanto fazem parte da memória
daquela porção do espaço, sendo a mais conhecida delas a Revolta da Vacina, sobre a
Ao mesmo tempo, o trabalho crescia exponencialmente devido ao momento
vivido pela cidade no século XIX, o que teve como consequência a ampliação da força
de trabalho e, apesar e por causa dos esforços disciplinares, o fortalecimento dos
sindicatos portuários. Durante o século XIX e a primeira metade do século XX, os
trabalhadores do porto chegaram a se constituir como a categoria politicamente mais
expressiva do país, segundo relatos de moradores antigos da área.
Com o tempo, a burguesia que então já se encontrava relativamente consolidada
na cidade começou a notar que tal disciplinarização não era suficiente para formatar e
conter os corpos da população citadina a fim de que se tornassem peças fundamentais
para a reprodução do modo capitalista de produção. Os trabalhadores, ao sair das
fábricas, retornavam para as suas moradias onde viviam aglomerados em cortiços com
condições de higiene que facilitavam a propagação de doenças que os tornavam
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“inúteis” para o modelo vigente, causando inclusive a morte de trabalhadores. Entra em
cena então um novo mecanismo de poder, conforme veremos a seguir.
Novas estratégias: o biopoder e a Reforma Passos
Com efeito, ao jogar um papel proeminente no processo disciplinar de regência
das multiplicidades dos corpos no espaço, a zona portuária carioca, cada vez mais, sofre
um processo acentuado de desqualificação – integrado ao processo mais amplo de hierarquização/segregação espacial da cidade – que homogeneizou a composição social da sua população. Os proprietários das chácaras transferiram-se de lá, passando a residir na Zona Sul e em outros locais chiques. A área configurou-se como um espaço habitado por uma população formada, em sua grande maioria, por trabalhadores dos numerosos trapiches, das oficinas, das fundições e também de unidades de produção de maior porte (Moinho Inglês, Moinho Fluminense). Esses trabalhadores, e a massa de desempregados e subempregados – brancos e negros, brasileiros e estrangeiros (sobretudo portugueses) – viviam em habitações coletivas (cortiços, casas de cômodos), onde as precárias condições de higiene favoreciam a propagação de moléstias, o que fazia da área o principal foco epidêmico da cidade (Lamarão, 1991, p. 160, grifo do autor).
É tendo este quadro como pano de fundo que as práticas empreendidas a partir
de então na cidade passam a ser representativas daquilo que Foucault chama de
biopoder, onde “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana,
constitui suas características fundamentais vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral de poder” (Foucault, 2008, p. 3). O filósofo
caracteriza a sociedade biopolítica como uma sociedade de segurança onde o poder se
dá sobre o conjunto de uma população e cujas técnicas representativas são a estatística,
a probabilidade, o problema das séries. Enquanto o poder disciplinar tem como base a
ideia do corpo como máquina, a biopolítica trata do corpo-espécie, e o biopoder seria a
combinação da disciplina com a biopolítica. Na realidade, o biopoder e o mecanismo de
segurança já estavam presentes desde o século XVII, mas na virada do século XIX para
o século XX teríamos assistido à sua generalização espacial. É necessário ressaltar que o
esquema histórico que estamos construindo aqui em relação à sucessão dos mecanismos
de poder possui uma finalidade meramente didática cuja função é facilitar a
compreensão dos processos que vêm historicamente produzindo o espaço urbano da
cidade do Rio de Janeiro e em especial da sua zona portuária a partir de um olhar
foucaultiano, procurando evidenciar predominâncias de um mecanismo sobre os demais
em cada período. O próprio autor afirma não haver primeiro um, depois outro, e depois
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outro. “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos
mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina”
Ao final do século XIX, estamos nos referindo a um Brasil republicano que
“desencadeava um novo espírito e tom social bem mais de acordo com a fase de
prosperidade material em que o país se engajara” (Prado Júnior, 1974, p. 209). Com
isto, estabelece-se um novo pacto político-territorial para a cidade: “era preciso romper
com a cidade colonial escravista e portanto com o velho pacto territorial que aliava
senhores e burguesia comercial, de um lado, e escravos e trabalhadores livres, de outro”
(.) a ampliação das atividades desempenhadas pelo país passa a ser estimulada sobretudo por interesses internacionais, isto é, o capital financeiro que, alterando o equilíbrio conservador ditado pelo Império, vai demonstrar sua capacidade de articulação visando transformações sociais, econômicas e espaciais. Na cidade, elas enfocavam pontos específicos e orientavam-se para a eliminação de ruas sombrias e estreitas, em parte atendendo aos princípios de salubridade e higiene. Criavam-se caminhos para uma nova modalidade de transporte: o automóvel. Seria de preferência atacada a área central, o núcleo colonial, e preparada a direção de expansão do uso residencial para a burguesia urbana. Mas a base econômica, fundamental para o país, era o destaque. E na cidade, ela se materializava no porto, foco das trocas comerciais. (Pinheiro & Rabha, 2004, p. 46)
Assim, o biopoder do Estado entre fins do século XIX e início do século XX
vem acompanhado da necessidade de reformar a área do porto em si. Após a elaboração
de sete projetos de reformas que não se concretizaram, vem à tona a reforma do porto
levada a cabo pelo então prefeito Francisco Pereira Passos, realizada no início do século
XX, sob a presidência de Rodrigues Alves.
A reforma era esperada com afinco pela população que passava por tantas
transformações desde o século anterior. A adesão a Pereira Passos foi praticamente
completa. Havia uma promessa de futuro que carregava a ideologia do progresso e do
desenvolvimento enquanto sinônimo de modernização ocidentalizada. Ademais, a fim
de legitimar a necessidade da reforma perante a população, instaurou-se uma
consciência de crise similar com a que podemos observar contemporaneamente com o
projeto Porto Maravilha, conforme falaremos adiante.
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O porto do Rio de Janeiro tal como o conhecemos hoje foi inaugurado
oficialmente em 1910, depois de sete anos de obras que retilinizaram a costa aterrando
uma área de 175.000m2 com entulho proveniente do arrasamento do morro do Senado.
Entretanto, para chegar ao objetivo proposto,
a ação do Estado reveste-se de alguns importantes aspectos. Num momento inicial, preparatório, ele faz tábula rasa da legalidade preexistente, introduzindo importantes modificações na legislação com o intuito de viabilizar o projeto, erguendo um novo aparelho legal que ratifique sua intervenção. O Estado faz tábula rasa do promíscuo espaço preexistente, limpando o terreno de trapiches, cortiços, e construindo em seu lugar um novo – e racional – espaço porto-cidade. Praticamente ao mesmo tempo, o Estado faz tábula rasa da demografia, limpando o terreno de gente perigosa (a repressão à Revolta da Vacina foi uma verdadeira operação de guerra), criando assim condições para a higiene física e moral da cidade moderna e civilizada que surgia dos escombros do espaço preexistente. Destruição do espaço legal, do espaço geográfico, do espaço demográfico. Destruição enfim do espaço social. Produção de um novo espaço social (Lamarão, 1991, p.164, grifo do autor).
No afã de limpar a cidade e torná-la civilizada segundo os moldes das cidades
européias, muitos casarões e cortiços foram arbitrariamente derrubados para a
construção de grandes avenidas, como a Rio Branco, e seus moradores foram, também
arbitrariamente, despejados. Tais medidas, apelidadas pela população de bota-abaixo,
foram responsáveis por crescentes ondas de insatisfação popular, que representavam
então a outra ponta das relações de poder, que é a resistência.
O prefeito Pereira Passos teve como principal parceiro durante sua gestão o
então Diretor-Geral da Saúde Pública Oswaldo Cruz, médico e sanitarista nomeado pelo
então presidente Rodrigues Alves. Em 1903-1904 o médico institui a vacinação
obrigatória contra a varíola, que insuflou a população já insatisfeita com as remoções e
provocou a conhecida Revolta da Vacina. Desta maneira, vemos que a postura adotada
por Passos e Cruz é especialmente atestadora do biopoder que envolveu a cidade
naquele periodo, uma vez que ela representa exatamente a descrição de Foucault a
respeito do higienismo que vigora com a manifestação deste mecanismo de poder:
O problema se coloca de maneira bem diferente: não tanto impor uma disciplina, embora a disciplina seja chamada em auxílio; o problema fundamental vai ser o de saber quantas pessoas pegaram varíola, com que idade, com quais efeitos, qual a mortalidade, quais as lesões ou quais as seqüelas, que riscos se corre fazendo-se inocular, qual a probabilidade de um indivíduo vir a morrer ou pegar varíola apesar da inoculação, quais os efeitos estatísticos sobre a população em geral,
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em suma, todo um problema que já não é o da exclusão, como na lepra, que já não é o da quarentena, como na peste, que vai ser o problema das epidemias e das campanhas médicas por meio das quais se tentam jugular os fenômenos, tanto os epidêmicos quanto os endêmicos (Foucault, 2008, p. 14).
A reforma urbana trazida a cabo por Pereira Passos ainda pode ser
contextualizada dentro do período de gestão do território e produção do espaço
relacionado ao Estado liberal porque ela teria estado a cargo prioritariamente das
estratégias do capital, possibilitada pela intervenção estatal: “Seu agente seria o grande
capital, cabendo ao Estado apenas a tarefa de conceder os privilégios jurídicos e fiscais
para que fosse viável e lucrativa cada componente da operação” (Benchimol, 2002, p.
131). Parece-nos que tal situação se repete hoje com o projeto Porto Maravilha,
conforme podemos ver nos trabalhos já anteriormente indicados.
Uma tentativa de conclusão
Ao intencionarmos fazer um apanhado histórico da produção do espaço
portuário da cidade do Rio de Janeiro sob um olhar foucaultiano, notamos que os
mecanismos de poder predominantes em cada momento acabam por direcionar as
práticas urbanas empreendidas de forma mais ou menos adequada à manifestação de tal
poder. Neste sentido, é visível, por um lado, a invisibilidade da população local à
medida que os mecanismos de poder efetivados pendem para aquelas forças que são
historicamente mais passíveis de conduzir os rumos da cidade; porém, por outro lado,
Foucault nos ajuda a enxergar a outra ponta das relações de poder construídas
cotidianamente, que é a resistência, sendo possível pensar na construção de uma outra
sociedade a partir dela, ou delas, pois, uma vez que as relações de poder se configuram
múltiplas, assim o são as resistências.
Assim, deixamos aqui como apontamento para trabalhos futuros uma
investigação aprofundada das manifestações de resistência encontradas durante o
processo histórico de produção do espaço portuário da cidade, esperando que tenhamos
deixado clara a importância deste estudo, principalmente em um momento como o atual,
onde se assiste novamente a uma tentativa – sempre fracassada, mas que carrega
conseqüências – de sufocar tais resistências e de apagar a memória cotidiana daquele
Referências bibliográficas III Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico I Encontro Nacional de Geografia Histórica 5 a 10 de novembro de 2012 III Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico I Encontro Nacional de Geografia Histórica 5 a 10 de novembro de 2012
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